Um dos assuntos que têm sido destaque nas reuniões do Conselho Nacional dos Ouvidores do Ministério Público (CNOMP) é a possibilidade de processar demandas anônimas e sigilosas, em face do perene questionamento dos órgãos de execução que são seus destinatários, que invocam o art. 5º, IV, da Constituição Federal, o qual assegura que é livre a manifestação do pensamento, “sendo vedado o anonimato”.
Todavia, quando se está diante de uma demanda apresentada que descreve fato que necessita da intervenção ministerial, a exemplo de uma investigação criminal ou a instauração de um inquérito civil, necessário ponderar acerca de valores constitucionais, notadamente quando a sua própria redação atribui ao Parquet a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput).
Nesse norte, importante pontuar que a Carta Magna confere, no seu art. 129, uma série de atribuições ao Ministério Público brasileiro, dentre as quais ganham relevo: promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (I); zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (II); e ainda promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (III).
Tais funções, e muitas outras, são asseguradas ao Parquet no texto constitucional e em inúmeras legislações infraconstitucionais que cuidam da Instituição, a exemplo da Lei de nº 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e, no âmbito do Estado do Maranhão, da Lei Complementar Estadual nº 013/1991 (Lei Orgânica Estadual do Ministério Público).
Destarte, como as Ouvidorias do Parquet brasileiro não são órgãos de execução, mas, sim, integrantes da estrutura administrativa do Ministério Público, como se vê, no caso do Maranhão, na Lei Complementar Estadual nº 083/2005, que dispõe sobre a criação da Ouvidoria do Ministério Público maranhense, regulamenta a indicação e escolha do Ouvidor e dá outras providências, e no respectivo Regimento Interno (Ato Regulamentar nº 01/2011-GPGJ), ao receber demandas de pessoas (físicas ou jurídicas) que as procuram, faz os encaminhamentos devidos.
Valioso abrir um parêntese, para afirmar que o objetivo da criação das Ouvidorias é contribuir para elevar, continuamente, os padrões de transparência, presteza e segurança das atividades dos membros, órgãos e serviços auxiliares da Instituição, devendo, para tal desiderato, disponibilizar canais permanentes de comunicação e interlocução que possibilitem receber reclamações, críticas, sugestões, elogios e pedidos de informação de cidadãos, entidades representativas, órgãos públicos e autoridades, além da obtenção, por parte destes, de notícias a respeito do andamento das suas manifestações.
Realizado este registro, pondera-se que o órgão pode, em determinados casos, realizar o arquivamento, de plano, de algumas demandas, quando não apontem irregularidades ou não estejam minimamente fundamentadas, ou, ainda, quando não tenham relação com as funções ou atividades desenvolvidas pelo Ministério Público ou reclamem providências incompatíveis com as atribuições legais da Ouvidoria. E assim o faz.
Entretanto, o simples fato de a demanda apresentada ser anônima ou sigilosa não impede o seu processamento pelas Ouvidorias.
Com relação ao primeiro caso, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que a denúncia anônima, muito embora não prevista, de forma expressa, no Código de Processo Penal, possui respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, e pode, aliada a outros elementos de prova, dar ensejo ao início da persecução penal, como revelado, por exemplo, no RHC nº 73.980, no HC nº 380.264 e no RHC nº 59.542.
Dessa forma, constata-se que as demandas anônimas recebidas nas Ouvidorias do Ministério Público brasileiro podem dar ensejo a procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que se prestem a corroborar as informações daquela fonte; não sendo, contudo, suficientes, por si sós, para a requisição, pelo Promotor de Justiça, da instauração de inquérito policial, para o requerimento de prisão temporária ou preventiva ou de intercepção telefônica, ou, também, para o oferecimento da denúncia.
O mencionado entendimento não é somente do Tribunal da Cidadania (por meio das suas 5ª e 6ª Turmas, que tratam de matéria criminal), mas, ainda, do Supremo Tribunal Federal, conforme se vê no Inq. nº 1957, no HC nº 98.345 e no HC nº 107.147.
Já no que diz respeito à possibilidade de instauração de inquérito civil, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a denúncia anônima, isoladamente considerada, é suficiente para tal desiderato, como demonstrado no AgInt no REsp nº 1.281.019 e no REsp nº 1.447.157 (o voto condutor deste último julgado é bastante elucidativo).
Este derradeiro julgado afasta também o argumento utilizado costumeiramente por quem pensa o contrário, no sentido de que o art. 2º, II, da Resolução nº 23 do Conselho Nacional do Ministério Público, assevera que o inquérito civil, quando for instaurado mediante requerimento ou representação, depende da identificação da pessoa que demanda o órgão.
Chega-se a esta conclusão até porque os §§ 1º e 3º do supramencionado art. 2º autorizam a referida investigação.
Aquele regramento, que se apresenta mais cristalino no art. 14, caput e § 1º, da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), já foi objeto de análise do Superior Tribunal de Justiça, o qual afastou a sua interpretação restritiva, assinalando a possibilidade de instauração de inquérito civil ainda que se cuide de denúncia anônima.
Disposição similar está descrita no art. 144, caput, da Lei nº 8.112/1990 (que trata do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União), e, até nesse caso, o Tribunal da Cidadania já entendeu que a denúncia anônima pode dar ensejo à instauração de processo administrativo de natureza disciplinar, desde que esta demanda esteja corroborada em outros elementos indiciários, consoante demonstrado no MS nº 20.053.
Destarte, a previsão inserta no art. 15, § 5º, do Regimento Interno da Ouvidoria do Ministério Público do Estado do Maranhão, no sentido de admitir o processamento de demandas anônimas em determinados casos, apresenta-se constitucional e legal.
Outro não é o entendimento do Conselho Nacional dos Ouvidores do Ministério Público (CNOMP), o qual tem uma Nota Técnica, aprovada em 2011, prevendo a possibilidade de processamento de demandas anônimas.
Diversa não é a conclusão no que concerne às demandas sigilosas, porquanto é lícito ao demandante optar pela não divulgação dos seus dados, conforme permissão do art. 15, caput e §§ 1º e 4º, do citado Regimento Interno.
Se o Pretório Excelso e o Superior Tribunal de Justiça permitem o recebimento de denúncias anônimas, aduzindo que estas são hábeis para o início da persecução penal, através de procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que confirmem suas informações, e para a instauração de inquérito civil, não há dúvida de que plenamente admissíveis as demandas sigilosas apresentadas às Ouvidorias do Ministério Público, em especial quando não há qualquer restrição constitucional em sentido oposto, tratando o demandante como efetivo sujeito de direitos.
Valioso destacar que, ao contrário das demandas anônimas, há a identificação do interessado nas demandas sigilosas, com o fornecimento dos dados pessoais exigidos no sistema informatizado das Ouvidorias, que, todavia, ficam preservados e restritos, sem a sua comunicação sequer para o órgão de execução destinatário. Este, caso necessite de mais alguma informação a respeito, deverá solicitar diretamente àquele órgão, o qual entrará em contato com o demandante, no sentido da quebra administrativa do sigilo ou da complementação das informações, tomando como parâmetro a manifestação do Promotor de Justiça. Todavia, sem a anuência do denunciante, não há a quebra administrativa, pelas Ouvidorias, do sigilo conferido aos dados. Isto só se afigura possível pela via judicial.
Esta questão já foi apreciada pela Ouvidoria Nacional do CNMP, a qual, analisando solicitação realizada por Promotores de Justiça do Estado do Maranhão que buscavam identificar determinados denunciantes (argumentando a supremacia do interesse público sobre o privado e a relatividade dos direitos ligados à privacidade e à intimidade), decidiu pelo seu indeferimento, como se vê no Ofício nº 30/2016-OUVIDORIA/LC-CNMP, que foi enviado ao Procurador-Geral de Justiça maranhense.
Assim como a Ouvidoria Nacional, entende-se que a quebra administrativa do sigilo dos dados do demandante representa a nítida violação ao objetivo da própria criação do órgão.
Portanto, demonstradas as bases jurídicas, que dão o sustentáculo, para não se arquivar de plano todas as demandas recebidas nas Ouvidorias em virtude do simples fato de serem anônimas ou sigilosas.
Rita de Cassia Maia Baptista é Procuradora de Justiça e Ouvidora do Ministério Público do Estado do Maranhão.